quinta-feira, 28 de junho de 2007

O papagaio falante que escreve em bom português...

Gostaria de começar este papo dizendo que algumas pessoas deixam saudades plantadas na gente. E aí, quero falar de um livro especial de um autor que ainda não sabe o tamanho que tem, embora eu tenha a sensação de que ele nem quer saber disso. O que é muito bom. YAGUARÊ YAMÃ (foto acima) é o escritor e ilustrador de SEHAYPÓRI – O LIVRO SAGRADO DO POVO SATERÊ-MAWÉ (Peirópolis). Indígena de origem Maraguá e Sateré, Yaguarê ficou no mesmo hotel em que nos hospedamos. Convivemos durante o Salão do Livro da FNLIJ. Seu semblante quieto, observador, desconfiado, percorria os ares do Rio de Janeiro com jeito de quem queria aprender. Depois fui saber de mais. Uma coisa deixava Yaguaré com o coração intranqüilo: seu livro ainda não havia chegado. Estava no prelo. E embora Denyse Cantuária, sua editora, tentasse tranqüilizá-lo dizendo que o livro chegaria a tempo, era fácil perceber que nem mesmo ela estava certa disso. Ah, os bastidores do Salão... Alguns, como este, são passíveis de publicação. Outros, nem tanto. Era quarta feira, dia da participação dos indígenas no seminário. Dia de Yaguarê apresentar o livro. Chamaram seu nome para compor a mesa ao lado de outros nomes importantes deste movimento de autores indígenas que a cada dia conquista novos leitores. Sentou-se à mesa. Ficou aquela impressão de que o menino do povo do guaraná sentia novamente as ferroadas da tukandera*... Cinco minutos. Denyse entra no auditório como um Encantado**. Entrega a Yaguarê o livro tão esperado. Em mãos, toda a cultura Saterê-Mawé. Denyse, sem saber, tirara a Waiperiá*** das mãos de Yaguarê. Agora, seu trabalho estava pronto para ganhar o mundo e ajuda-lo a vencer novas batalhas antigas.
SEHAYPÓRI em português significa COLEÇÃO DE MITOS. Para o povo Mawé, são os mitos e lendas gravados com grafismos no PURATIG, remo sagrado e símbolo maior da identidade cultural daquela comunidade. Desde aquela quarta feira, passa a ser também um livro onde os grafismos do Puritag tornaram-se palavras. Mitos e lendas que ultrapassam os limites da oralidade e ganham o mundo no relato de Yaguarê Yamã. Correspondem para o ocidente ao Livro do Gênesis e outras histórias presentes no Antigo Testamento. Relata a origem do mundo, criado a partir de dois planetas, filhos da COBRA GRANDE. Conta a origem dos bichos, da noite, do fogo, do guaraná. Fala ainda dos costumes daquele povo, como quando explica o ritual Waiperiá. Enfim, nos aproxima de uma realidade até então distante. De fato, conta a nossa origem quase perdida na colonização européia. Ironicamente, a Europa se mostra interessada em publicar o livro por lá.
Voltando ao que mais interessa, não pense que por ser escrito por um indígena o livro não tem qualidade literária. O texto é claro, muito bem escrito. Para completar, a editora Peirópolis investiu numa edição caprichada. Capa em relevo, projeto gráfico exuberante em preto e vermelho, com belos grafismos do autor. O leitor pode devorar o livro de uma vez (como fiz) ou escolher entre os 30 mitos, lendas e fábulas presentes no texto. Em geral, os capítulos são independentes. Adultos e crianças vão gostar de saber como os cachorros perderam a fala, descobrir os companheiros-do-fundo e outras tantas histórias. Em resumo: SEHAYPÓRI é um livro imprescindível para que possamos nos aproximar de uma cultura ainda estranha para nós. E isso, feito sem didatismo. Muito pelo contrário. Ler as histórias de SEHAYPÓRI é tão gostoso quanto brincar de peteca, tomar banho de rio ou pegar jaboticaba no pé.
Quanto àquela saudade lá de cima, foi plantada em mim por Denyse Cantuária. Naqueles dias cariocas ela foi companheira de todos os momentos. Sua atenção mais que especial com seus “protegidos” indígenas era a mesma que delegou a Nelly Novaes Coelho e a Bartolomeu Campos de Queiroz. Denyse ama o que faz. E este amor está materializado no livro de Yaguarê Yamã. Que possamos colher encontros e sorrisos desta saudade. Quanto a Yaguarê, deixo aqui nosso abraço de letrinhas. Que o povo Saterê-Maué possa viver em paz seguindo as tradições gravadas no remo sagrado. E que Tupana**** saiba recompensar os homens de bem!
* TUKANDERA – Formiga venenosa
** ENCANTADO – Seres que habitavam o Planeta Água – um dos filhos da Cobra Grande (o outro seria o Planeta Terra).
*** WAIPERIÁ – Ritual de passagem da adolescência para a idade adulta em que os participantes calçam uma luva cheia de tukanderas e são por elas picados enquanto dançam e entoam o hino sagrado.
**** TUPANA – Deus do Bem.
P.S. Quanto a expressão Papagaio Falante no título deste post, é ao mesmo tempo o significado da palavra Mawé e símbolo maior deste povo.

Um comentário:

Fátima Campilho disse...

Olá,
Nem sei como vim parar aqui, mas, de cara, me encantei. Adoro literatura in`´igena e estou lendo vários livros do Daniel Munduruku, meu ídolo! Ele olha para mim e diz:"Você ainda não aprendeu nada daquilo que falei!"Isto aconteceu quando participei de uma palestra e reencontrei-o no Salão do Livro aqui no Rio de Janeiro.
Um abraço.