Meu pai nasceu no interior do Ceará e viveu uma infância árida de sabores literários. Entre a sua casa e a escola havia uma distância razoável que era percorrida diariamente no lobo de um jumento. Tinha sorte. Outros percorriam a pé. Apesar disso, a vida dura do povo do sertão não tornou o menino Francisco um homem rude. Muito pelo contrário. Estudou até onde pôde e seguiu à risca os ensinamentos religiosos. Não sei ao certo, mas a Bíblia deve ter sido seu grande livro onde viajou nas aventuras de Jonas no interior da baleia ou Daniel na cova dos leões. Ainda hoje, gosta de ler biografias de santos e outros assuntos relativos à vida religiosa.
Na minha infância, na maioria das vezes, foi meu pai, quem me levava até a porta da escola. O menino Francisco, agora com trinta e poucos anos, conquistara o status de ser chamado pelo sobrenome: Freitas. O trabalho dele levou nossa família para o interior do Piauí e da Bahia. Papai dividia seu tempo de leitor entre os versículos bíblicos e os normativos da empresa. Sabia tudo de cor. Outros livros também chegavam em casa. Ele os comprava dos mascates que vendiam enciclopédias pelo interior. Mas eram de uso dos filhos. Lembro de ter devorado alguns volumes de O Mundo da Criança. A escola pedia alguns títulos da coleção Vaga-lume. Eu também gostava da coleção do Cachorrinho Samba. Eu tinha fome de histórias. Papai me alimentava com livros, gibis e amor. Muito tempo depois, com a chegada dos cabelos brancos, meu velho ganhou o título de “Seu” Freitas. Assim ainda o chamam, muitos. Veio a aposentadoria e, aos poucos, vi que poderia – depois de aprender tanto com ele – dividir com meu pai o gosto por tantos livros que tive a oportunidade de conhecer. Desde então, nos tornamos parceiros de algumas leituras. Houve uma revolução lá em casa e depois dos 60 anos, na melhor idade, o menino do sertão descobriu a internet, voltou a estudar e, depois de tanto trabalho, pôde se entregar aos prazeres de uma juventude tardia, porém, bem vinda. Hoje, distantes a apenas três horas de avião, somos mais amigos que pai e filho.
Num dos nossos últimos encontros ele me perguntou se eu conhecia algum livro de Fernando Pessoa para indicar. Alguém do nosso círculo de amigos havia falado sobre o poeta português e aguçado sua curiosidade. Disse-lhe que sim, contei um pouco sobre o que eu conhecia mas não me senti à vontade para apresentar uma coletânea qualquer ou uma antologia. A poesia, às vezes, pode soar estranha para novos leitores, como meu pai. Prometi a mim mesmo que encontraria algum livro-aperitivo que despertasse uma fome de poemas no meu querido senhor-menino. Demorei a encontrar este livro mas, confesso que fui negligente em minha busca. Dia desses descobri O Almirante Louco (Fernando Pessoa, organização de Carlos Felipe Moisés, ilustrações de Odilon Moraes, SM) e meus olhos se encheram de cores, cheiros, arrepios, saudades e outras sensações. O curioso é que foi em abril, mês em que o “Seu” Freitas faz aniversário. Enfim, encontrei o presente. Tive que encomendar outro para mim, pois só tinha um exemplar na livraria.
O livro apresenta um projeto gráfico, um cuidado com o visual que pousa na perfeição. Não consigo imaginá-lo mais belo. Não fica a dever em nada aos poemas. As ilustrações de Odilon Moraes emprestam ainda mais beleza ao texto. Odilon criou ainda imagens para cada um dos pseudo-personagens de Fernando Pessoa. O livro, é bonito de se ver e de se ler. São apenas 64 páginas, mas, como disse antes, é um aperitivo. Delicioso. Temperado, com ingredientes selecionados por Carlos Felipe Moisés, que escreve seus comentários com uma linguagem concisa, fácil de entender, sem os arroubos eruditos de algumas edições – que assustam leitores mais simples. Divididos em blocos, Moisés apresenta características de Fernando Pessoa e seus personagens: Alberto Caeiro (poeta da natureza), Álvaro de Campos (o almirante louco) e Ricardo Reis (um poeta calmo e ignorado). Tudo seguido – é claro – de uma Seleção de poemas. Estão lá Quadras ao gosto popular, trechos de O Guardador de Rebanhos, Ah, um soneto entre outros. Por fim, há uma biografia leve, seguida de ótimas indicações de leitura para os que tiverem mais fome de Fernando Pessoa.
O Almirante Louco segue amanhã para os braços de “Seu” Freitas. Mais um pequeno mimo em retribuição a tanto que me deu e ainda me oferece. Fica aqui o desejo íntimo de que Fernando Pessoa e seus outros “eus” encantem desde o menino do sertão até o jovem senhor de cabelos brancos, personagens que habitam em meu pai, um homem que – mesmo sem ter lido o Poeta português – me ensinou:
“Quem tem pouco, tem tudo;
Quem tem nada, é livre;
Quem na tem, e não deseja
Homem, é igual aos deuses.”
P.S. As imagens:
1ª - Capa do Livro; 2ª - Fernando Pessoa por Odilon Moraes; 3ª - Alberto Caeiro por Odilon Moraes; 4ª – Álvaro de Campos por Odilon Moraes e 5ª – Ricardo Reis por Odilon Moraes.