Muito se escreve para crianças “ensinando” as boas maneiras, as “delícias” de ser bem comportado, a “importância” de sempre obedecer aos pais além das “benesses” de dormir cedo, não sem antes escovar os dentes, é claro. Não sei até que ponto estes temas podem ser chamados de “literatura” e como tal ser apresentados aos alunos nas escolas. Não sei se já observaram o interesse das crianças quando lêem estes livros. O que eu percebo é que tais assuntos parecem “quadrados” para o olhar poligonal infantil. É por isso que vez em quando me descabelo de felicidade ao roer as delícias de livros como O Pequeno Nicolau, A Maldição da Moleira, Na Beira da Estrada e Declaração Universal do Moleque Invocado.
Não deve ser fácil para um editor aprovar tais projetos que são, antes de tudo, sintonizados com a liberdade e fantasia que permeia a infância, em contraste com os limites e obrigações do mundo adulto. Num encontro recente com o poeta Fabrício Carpinejar ele afirmou que as crianças não querem mais se tornar adultas pois vêem seus pais sem tempo para “brincar”, correndo do trabalho para casa, preocupados com as contas a pagar e com outros tantos problemas. As crianças não querem mais ser astronautas. Querem ser advogados. Dia a dia, a fantasia perde espaço para os compromissos. Há pouco mais de uma década vivíamos bem sem a telefonia celular. Hoje, se estamos num banho e não atendemos ao chamado hipnótico do telefone, temos que explicar por que não estamos disponíveis – mesmo num sábado à tarde. Acredito que é importante olharmos para trás e nos reconhecermos crianças em nossos filhos. Sim, é bem possível que estejamos lá... Só que um pouco mais velhos.
Dia desses encontrei dois tesouros literários prontos a conquistar minha alma infantil: Mamãe já foi pequena antes de ser grande e Dicionário, o pequeno rebelde. Antes de prosseguir quero alertar aos mais conservadores: Se lidos por adultos, estes livros podem levar à reflexão, ao riso e a uma regressão cronológica quase como o elixir da fonte da juventude. Já se o leitor for uma criança, ela simplesmente vai se enxergar nos personagens e – provavelmente – verá o papai e a mamãe também. Estão na minha lista de “Altamente Recomendáveis”. Mas chega de tro-lo-ló e vamos aos livros.
Mamãe já foi pequena antes de ser grande (textos de Válerie Larrondo com ilustrações GENIAIS de Claudine Desmarteau, Rocco) brinca com a realidade de quase toda família. A mãe (o pai, enfim, o adulto) era perfeita quando criança e – por isso – exige a mesma perfeição de sua filha. Por exemplo: "mamãe sempre raspava o prato, comia tudinho, não deixava uma migalha". "Mamãe nunca metia o dedo no nariz, nunca disse um palavrão e antes de dormir desejava boa noite aos pais". Até aí, “tudo” bem. Mamãe era um poço de perfeição, não é mesmo? Mas aí, vem a ilustração, ao lado do texto e mostra DE VERDADE como mamãe era quando criança. É desatarrachar os parafusos de todo adulto “perfeito” e soltar o riso de qualquer leitor. De um jeito ou de outro a gente acaba se identificando ou com texto (que pena, hein?) ou com a ilustração (uma infância bem vivida).Já Dicionário: o pequeno rebelde (escrito e ilustrado por Claudine Desmartieau, Rocco) é um livro transgressor na forma e no conteúdo. Impresso no Brasil em capa dura e em papel com uma gramatura maior, pode ser usado à vontade por crianças que não vai ser destruído. Sua capa vermelha me fez pensar que poderia ser confundido com o “Manifesto Comunista”. Vem com um “prólogo” informando o “modus operantis”: “LER DE NOITE PARA OS PAIS ANTES DE BOTÁ-LOS PARA DORMIR”. As palavras do tal dicionário não aparecem em ordem alfabética. Parece seguir a ordem de “importância” para a vida do pequeno rebelde em questão. Tanto que o primeiro verbete é a palavra “EU”. Todas as definições estão sintonizadas com o universo infantil. Não há a beleza poética de Adriana Falcão em Mania de Explicação, mas há muito, muito humor e verdades infantis como, por exemplo, no verbete BESTEIRAS: Não são só as crianças que fazem besteiras. Os pais também fazem um monte, mas não tem ninguém para brigar com eles. Outro? Então vejamos... BRINCAR: os pais nunca têm tempo de brincar de nada. Daí eles ficam com inveja e se vingam, sempre com a mesma frase: “Você já fez os deveres?”. As ilustrações, mais uma vez, dialogam com o texto, só que sem a ironia constante do livro anterior. Claudine tem um traço cáustico, que não combina com cor-de-rosa ou com corações. Combina com o bom humor e a inteligência que transbordam nesta edição. Ah, quase ia me esquecendo, o danado do livro recebeu uma Menção Especial na Feira Internacional do Livro Infanto-Juvenil de Bolonha, uma das mais importantes do mundo no gênero.
Livros de literatura não devem vir com o “manual de instruções” ensinando para quê serve. A escola não deve usar a literatura com fins didáticos. A gente lê por prazer. E isso basta. Estes dois livros não vão ensinar seus filhos a se comportarem bem ou mal. Eles vão, sim, proporcionar um lazer diferente do que oferece o vídeo game, a TV ou o futebol. A gente pode, sim, brincar de ler. E, de preferência, brinque com seu filho. Hatuna Matata.
Um comentário:
Oi,
Não vejo a hora de tê-los em mãos.
Abraços.
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