


O museu fica na Estação da Luz (se você estiver de bobeira, pode dar uma esticadinha cultural na Pinacoteca do Estado se São Paulo, que fica ao lado) e abre a partir das 10 da manhã. Eu, por ser professora, entrei de graça. O Tino, por ser músico e jornalista pagou R$ 4,00. Precinho especial para tamanho prazer (aos sábados a visitação é gratuita). Rapidamente subimos para o terceiro piso com um grupo de estudantes do interior de Minas Gerais. Num auditório com um super telão foi projetado um curta falando sobre a importância cultural da Língua para a humanidade. Depois, a parede onde o curta é projetado abre-se convidando-nos a entrar na Praça da Língua, o espaço mais emocionante. Repleto de projeções por todos os cantos (pisos, paredes, tetos) vozes conhecidas declamam os mais belos poemas. A silêncio de uma turma de 100 adolescentes é de impressionar. A escuridão da sala nos deixa mais atento as palavras. Da definição da boneca Emília (leia-se Monteiro Lobato) sobre a vida ser pisca-pisca, passando por Guimarães Rosa dizendo que “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura” até o mais emocionante: ouvir Maria Bethânia sussurrar Fernando Pessoa em nossos atentos ouvidos: “Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma”. A produção de José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski emociona do início ao fim. Já pagou o ingresso (incluso as passagens de avião Brasília – São Paulo, o ônibus de Guarulhos ao Itaim e tudo o mais).
Mas não pára por aí: descemos ao segundo piso. Lá, o genial Beco das Palavras (onde brincamos de criar palavras num grande, divertido e interativo jogo virtual), a Grande Galeria (projetando num imenso corredor vários filmes simultaneamente), os pilares com as línguas que deram origem ao nosso português (africanas, indígenas, espanhola, inglesa, francesa...), a linha do tempo... por falar em tempo, não adianta ir com pressa.
Foi a partir daí que entrou num assunto delicado: a relação entre editoras, escolas, autores e alunos. Apresentou falhas como a troca servil entre escola e editora: “Eu levo meu autor à sua escola e vocês adotam o meu livro”. Reforçou a idéia dizendo que uma boa performance ao vivo não é sinônimo de um bom escritor, de um bom livro. Disse ainda que é salutar levar a criança a encontros com o livro como numa visita à biblioteca ou a uma feira do livro. Mas, segundo ela, NADA DISSO PRECISA DE UM AUTOR AO VIVO. Citou Freud: “o texto literário faz do jogo poético uma arte da sedução”. Citou Paul Auster, Mark Twain e Eça de Queiroz como ótimos sedutores literários. O prazer da leitura, concluiu, vem com muito trabalho e não precisa estar aliado à diversão.
Numa sala repleta de educadores, a imortal se mostrou impaciente com os professores ignorantes que nada sabem sobre literatura e pedem às crianças para escreveram cartas ao autor e aí este recebe pilhas e pilhas e pilhas e pilhas de missivas dizendo que adorou tal livro, que ama o autor e por fim, pedindo um livro autografado. Ana Maria Machado parecia estar tomada da ferrugem azul do seu personagem Raul. Desenferrujou mostrando garras de lobo. Detesta receber cartas de crianças ignorantes instruídas por professores ignorantes e que, apesar de ter uma equipe para responder a tais cartas e selecionar outras para uma possível e erudita carta-resposta do punho da própria autora, não acha que esta relação seja importante. Aí, eu enferrujei. Confesso que manchas azuis tomaram meu corpo. Decidi fuçar por aí para saber qual a relação que alguns autores com livros igualmente imperdíveis como os de Ana Maria Machado têm com as cartas que recebem das crianças. Descobri que existem sim, poucos, que detestam receber essas cartas que dizem “eu te amo”, “adoro seu livro”, “me dá um autógrafo”, etc (acham perda de tempo e sequer respondem). Mas uma maioria adora manter o contato com seus leitores, independente do grau de erudição (???). Realmente, não é obrigação de Ana Maria Machado responder cartas. Nem dar autógrafos em folhas de papel que não estejam permeadas com seus textos. Afinal, ela não é dona de fábrica de papel. Recomendamos a todos que leiam os livros de Ana Maria Machado. São ótimos. Mas – independente da sua erudição – não escreva para ela. Pode estar atrapalhando seu momento de inspiração. Ela não tem tempo para responder suas cartas. É uma imortal. Seu tempo deve ser restrito ao trabalho de escrever. E ela escreve muito bem. Ah, não esqueçam: Se encontrá-la por aí na rua só peça um autógrafo se estiver munido de um livro dela, numa edição bem cuidada. Cuidado para não dizer nenhuma besteira. Ana Maria Machado pode não gostar.
Curioso é que naquela noite, quando chegamos a casa onde estávamos hospedados, nosso anfitrião contou que, quando criança, estudando em Rondônia, ficou marcado pela visita de Ana Maria Machado à sua escola quando ela autografou o melhor livro da sua infância: Raul da Ferrugem Azul. Lembra de detalhes da visita da autora. Fala de trechos do livro. Lembra da felicidade de compartilhar aquele espaço tão interiorano quanto Itabira, com a imortal. Entristeceu com nosso relato. Desencantou.
O menino Carlos Drummond de Andrade sozinho em seu quarto numa casa em Itabira, interior de Minas Gerais, lendo à luz do lampião não tinha autor indo à escola, não tinha Feira do Livro nem outras ações de incentivo à leitura. Mas se viu encantado pelos livros. Cresceu gênio da palavra. Mas Drummond é único. Seria poeta morando na lua. Talvez, se algum autor tivesse ido a Itabira naqueles idos, ajudasse a despertar noutras crianças o prazer de ler um bom livro. Não seriam poetas. Seriam como o filho de uma espectadora daquela tarde em São Paulo que levou à mesa a seguinte história:
“Meu filho tem 11 anos. Recentemente descobri que ele escreve ótimos poemas. Dia desses ele me disse: - Mamãe, já sei o que vou ser quando crescer! Professor de matemática! Naquele instante parei pra pensar e fiz uma descoberta incrível: meu filho escreve por prazer!!!”
Ana Maria Machado escreve muito bem. Carlos Drummond de Andrade escreveu muito bem. Milhões de brasileiros escrevem mal, independente dos professores que os educam ou deseducam. O buraco é muito mais embaixo. Todos sabemos disso. Acho que o futuro professor de matemática guardaria o autógrafo da imortal na gaveta da memória. Poderia até não ajudá-lo no desenvolvimento, na sedução do seu prazer em ler. Mas, certamente, guardaria um sentimento de conquista. Um tiquinho de felicidade, mesmo sabendo que o autógrafo foi num pedaço de papel que a autora não fabricou, já que seu livro pode muito bem ter sido lido numa biblioteca. Desenferrujei e pronto!!!