quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Literatura de Cordel de cara e roupa nova!!!

A Literatura de Cordel, que durante muito tempo ficou presa às amarras gráficas e geográficas em produções baratas distribuídas em feiras do interior do nordeste brasileiro, onde o português era escrito muitas vezes num linguajar próprio do sertão - nem por isso menos rico que o nosso português -, ultrapassa fronteiras e ganha uma nova roupagem ao ser adotada por editoras mais conhecidas, que oferecem cores às ilustrações, novas possibilidades aos projetos gráficos, novas histórias e releituras de clássicos do nosso folclore e da literatura mundial, conquistando o olhar de crianças, jovens e adultos, atraídos para o livro também através do som das rimas do cordel. Esse movimento todo tem alguns desbravadores mais conhecidos como o poeta Arievaldo Viana e o ilustrador Jô Oliveira mas o olhar da indústria do livro se abriu para este nicho em 2007, após a conquista de diversos prêmios literários pelo belíssimo e ousado projeto de Fernando Vilela, bancado pela Cosac & Naify, intitulado LAMPIÃO & LANCELOTE: um livro maravilhoso tanto no texto, quanto no projeto gráfico. O "novo" Cordel agradece tal façanha e já oferece aos leitores alguns títulos interessantes como os citados a seguir e que são queridos dos Roedores de Livros.
História recolhida do nosso folclore, O BICHO FOLHARAL ganha o status de Cordel Ilustrado, numa edição em cores, formato 23cm x 23cm, com os versos do cearense Arievaldo Viana e o traço fantástico do pernambucano Jô Oliveira. Aliás, a rica ilustração ganha merecidos três quartos da paginação num projeto gráfico que só pecou na capa do livro onde ousou acrescentar folhas que nada têm a ver com o desenho de Jô.
O texto de Arievaldo, escrito em sextilhas (com o segundo, o quarto e o sexto versos rimando entre si, deixando órfãos o primeiro, terceiro e quinto versos), vem carregado de regionalismo como os termos quixó, quengada e mangando, por exemplo. Mas em nada atrapalha o entendimento do leitor. Para os mais curiosos há um glossário no final do livro. A história sobre a esperteza do macaco sobre a onça fala também da infância da criança sertaneja:

Brinquei de gado-de-osso
De carrapeta e pião,
Em cavalinhos de pau
Corria pelo sertão...
Com prego, lata e madeira
Fazia o meu caminhão.

A exemplo da adaptação feita pela dupla para O PAVÃO MISTERIOSO, O Bicho Folharal usa da força da poesia e da imagem para conquistar leitores mirins do Brasil. A editora IMEPH ainda peca um pouco na questão da distribuição. Numa busca rápida pela internet não encontrei o exemplar do Bicho Folharal em nenhum dos grandes sites de comercialização de livros. Fica aqui um puxão de orelha para a editora. Quem quiser adquirir o livro recomendo que visite o blog de ARIEVALDO VIANA e veja diretamente com ele como fazer.
A dupla Arievaldo Viana e Jô Oliveira aparece também numa produção da editora Cortez intitulada A AMBIÇÃO DE MACBETH E A MALDADE FEMININA. O texto é uma adaptação da obra MACBETH, de William Sheakespeare fato explicado já nos primeiros versos:

Essa história se passou
Na Escócia, antigamente,
Foi William Shakespeare
Que a legou ao presente
Numa peça de teatro
Com desfecho comovente.

Se em O Bicho Folharal, Arievaldo Viana escreve um texto mais próximo da linguagem do leitor nordestino, aqui, mostra sua versatilidade em sextilhas que versam em bom português, sem a necessidade de glossário. Porém, não se distancia daquele leitor. Usa da clássica história da mulher que instiga o marido a cometer crimes e se tornar rei para levar o Cordel para um público mais universal. E isso é ótimo. São 36 páginas no formato 21 x 28 cm, com ilustrações caprichosamente coloridas que ocupam metade da paginação. Jô Oliveira é um mestre neste tipo de trabalho. Seu traço é a cara do nordeste e dos tempos medievais. Não por acaso é a sua ilustração que aparece com freqüência nestes novos caminhos que a literatura de Cordel atravessa. Eu gostaria de ver mais os desenhos de Jô em outras produções além destas temáticas. Por exemplo, adoro seu trabalho na maravilhosa versão de Ana Maria Machado para Alice no País das Maravilhas. Mas isso é assunto para outra hora. Voltemos ao "novo" Cordel.
Há poucos dias, não resisti à tentação e me entreguei aos encantos do livro A ESPANHOLA INGLESA (Scipione) em que o poeta pernambucano Manoel Monteiro, considerado o mais importante cordelista brasileiro em atividade, faz a adaptação da clássica história escrita originalmente por Miguel de Cervantes e publicada no livro Novelas Exemplares. A adaptação também conta com a originalidade e beleza das ilustrações de Jô Oliveira, desta vez, em preto e branco. Dos livros citados anteriormente, é o que mais se aproxima do formato original do folheto de cordel sendo apenas um pouco maior (12 x 18 cm). O projeto gráfico foi certeiro ao escolher o papel reciclado para o miolo. Eu não senti falta das cores presentes nos livros citados anteriormente.
Na verdade, gostei e muito do resultado final desta edição. Porém o que mais chama a atenção é o texto. O autor escolheu a septilha (estrofe em sete versos em que o segundo, quarto e sétimo rimam entre si e com rimas também entre o quinto e sexto verso) como ferramenta de trabalho para compor a adaptação. Esta forma exige mais apuro e o veterano poeta começa assim o seu trabalho:

Nesta hora imploro à Musa
Descer dos céus, por instantes,
Para ajudar-me a contar
Um dos dramas mais tocantes
Que ocorreu além-mares
Nas Novelas exemplares
Do grande escritor Cervantes.

A leitura é de fácil absorção, sem regionalismos. A história da menina espanhola raptada por ingleses que nutre um amor quase impossível pelo filho do seu algoz, conquista o leitor desde o início e a forma poética dos versos de Manoel Monteiro ganhou a minha atenção para uma segunda leitura e já, uma terceira, onde me vejo pescando as sutilezas ali depositadas. A edição inicia com uma apresentação sobre o "novo" Cordel conquistando espaço nas escolas e termina com informações sobre a adaptação, uma breve biografia de Miguel de Cervantes, além de resenhas sobre os artistas das letras e das imagens envolvidos no projeto. Se fosse um filme, eu diria que a edição em DVD conta com extras imperdíveis. Parabéns à Scipione por investir na idéia e conseguir oferecer ao público um produto tão interesante. Que possam vir outros.
Pensando em escrever sobre estes livros, em que o cordel ganha uma nova roupagem, não poderia esquecer de um livro que me encantou há tempos, muito antes de LAMPIÃO & LANCELOTE se encontrarem no livro de Fernando Vilela. Falo do ROMANCE DO VAQUEIRO VOADOR (João Bosco Bezerra Bonfim, Editora LGE). Publicado originalmente em 2003, a primeira edição já ousava no formato (30 x 40 cm). Eu só alcancei o vaqueiro quando ele já voava numa edição de formato menor (20 x 27), porém ainda com toda a ousadia do premiado projeto gráfico de Wagner Alves. Por falar em ousadia, esta é a marca do projeto. As duas xilogravuras que o Mestre cearense Abraão Batista produziu para o livro durante uma rápida passagem por Brasília numa Feira do Livro se multiplicaram e ganharam mais força em conjunto com imagens dos documentários de Vladimir Carvalho. Wagner Alves criou a liga que honrou o texto inédito de João Bosco.
A história não tem conotação infantil, mas é rica em poesia e em originalidade aptas a conquistar jovens leitores. Fala da vida de um nordestino candango (trabalhador que veio para ajudar na construção de Brasília) de nome incerto que saltou para a morte entre os edifícios da Esplanada dos Ministérios lá pelo fim dos anos 50 e ainda hoje vive a assombrar quem passa por lá em noites de lua com seu aboio misterioso. Escrito em sextilhas, o texto não apresenta um equilíbrio de rimas, instigando o leitor mais acostumado à linguagem do Cordel a estranhar a falta. Mas elas estão lá pousadas em desalinho ao olhar viciado. João Bosco é bom de verso e sua história tem um refrão que ecoa nas páginas do livro tal qual o aboio do tal vaqueiro voador:

Ei-lo caído de bruços
Para o campo paramentado
Peitoral, perneira, gibão
Chapéu passado o barbicacho
Voou no rabo da rês
Mas só chão havia embaixo.

O livro, semente de tantos outros que vieram e que virão, já produz frutos enxertados com outras culturas. Circula por todo o mundo o documentário homônimo, em longa metragem, do diretor Manfredo Caldas. Já foi vencedor do prêmio Signis de Melhor Documentário no Festival de Toulouse - 2008 e segue seu caminho nas salas de exibição. Clicando AQUI você pode assistir ao trailler do filme. O vôo do vaqueiro de João Bosco busca novas paisagens muito além da Esplanada.
Fico no desejo de encontrar num cordel paramentado de livro o poeta cearense João Bosco Bezerra Bonfim ao lado do ilustrador pernambucano Jô Oliveira recontando algumas dessas histórias clássicas da nossa literatura nordestina. Os dois trazem nas suas origens o calor, as dores, humores e amores do sertão brasileiro. Os dois, moram no coração do Brasil, e convivem com tantos outros imigrantes de lá. Os dois, têm uma história viva em busca de levar a Literatura de Cordel ao alcance de um público maior. E, enfim, os dois têm um talento imenso para conquistar tal feito. Enquanto este desejo fica ainda no campo das idéias, minhas, estejam certos de que os livros citados aqui são, antes de tudo, ótima leitura. O cordel veste novas roupas e sai por aí namorando outros tantos novos leitores. Que o mercado do livro continue redescobrindo caminhos para que novas aventuras ganhem versos, rimas e traços capazes de alcançar não só a Feira de Juazeiro do Norte, mas as livrarias do planeta. Êita literatura porreta!!! Ufa, eu também sei fazer rimas. Hatuna Matata.

P.S. Para saber mais sobre Literatura de Cordel CLIQUE AQUI.

2 comentários:

Lígia Pin disse...

Tudo demais de bom! Às vezes eu receio que essa onda das grandes editoras em lançar o texto em cores e tudo mais acabe com o encanto desse tipo de literatura. Aquele papel jornal ainda faz muita diferença e a quantidade de textos "rimados" que o povo escreve achando que é cordel assusta. Já viu? Tomara que seja apenas receio meu.
Beijão procê!
;o)

Fátima Campilho disse...

Gosto de cordel de qualquer jeito.
Meus alunos fizeram vários com tema da vinda da família real. Ficaram muito bons.
Já viu a edição nº 19 da revista "Discutindo Literatura" da Escala? Cordel na capa!
Porreta ficou sua análise!
Abraços,
Fátima.