Duas e vinte e sete da manhã. No quarto, a TV ligada exibe a sequência de um filme de terror. O que deu origem a série até que não era ruim, mas este é uma tortura para qualquer mente insone como a minha. Sinto frio. Sinto fome de algo prazeroso para meus olhos que teimam em não dormir. Ao lado da cama alguns livros que Ana Paula trouxe de uma recente viagem à Sampa. Muita coisa boa. Escolho um e vou para a sala. Levo o cobertor. Acendo a luz e Hermione, nossa gata, se aninha perto do sofá. O livro, escolhido a dedo, intitula-se Os Olhos Que Comiam Carne e outros contos de terror de Humberto de Campos (organização de Denyse Cantuária, publicado pela Noovha América, para o selo Sete Luas). Ganhei a noite e mais um motivo para escrever no blog.
Composto por cinco contos, este livro já é – para mim – um clássico nacional do gênero. Com sua pesquisa, Denyse nos mostra que a literatura de horror tupiniquim pode caminhar lado a lado das estrangeiras. Lado a lado com Edgard Allan Poe (Wiliam Wilson), Guy de Maupassant (O Horla) e Charles Dickens (O Sinaleiro), para citar alguns. Os textos do maranhense Humberto de Campos (1886 – 1934) datam de quase uma centena de anos. Apesar de algumas referências – óbvias – àquela época, seus contos podem facilmente ser devorados por olhos juvenis famintos de boa literatura. Mas não pense que vai encontrar ali um balaio de sustos, rios de sangue, monstros fantasmagóricos ou outros clichês que acompanham mutos dos “novos” livros deste gênero que se estendem em coleções nas prateleiras de muitas livrarias.
O terror dos contos de Humberto de Campos não vem de fora, à meia-noite, carregado pelo uivar do vento. É mais íntimo e poderoso. Nasce dentro da gente. Range dentro da gente. É inesperado como o primeiro soluço. De repente. Em Catimbau, o fim, súbito. Pronto. Acabou-se. E a gente fica assim, sem fala, na página 24. A Noiva foi escrita principalmente para quem – como eu – vive garimpando livros em sebos e vez em quando encontra pertences de outros leitores guardados nas páginas de velhas edições: eu já encontrei uma nota de 50 Cruzados Novos (aquela com o Drummond), um extrato de banco, um pedaço puído de uma fita do Senhor do Bomfim e uma rosa desidratada. Quantas histórias por trás destes objetos, não é mesmo? A tal noiva, por exemplo, procura há anos por um pertence seu esquecido num livro.
O conto que dá título ao livro é absurdamente bem escrito. Me lembrou O Extraordinário Caso dos Olhos de Davidson, conto de H. G. Wells, que tenho em casa no excelente quarto volume da série Contos e Poemas para Crianças Extremamente Inteligentes (Coletânea organizada por Harold Bloom, Objetiva). Há ainda O Seringueiro, em que a gente vai se encantando com o mocinho até que... Enfim, o livro termina com O Poço dos Maridos, que dedico a tantas belas mulheres caçadoras de príncipes encantados sem defeitos. Há ainda uma apresentação do autor, da organizadora e do selo Sete Luas.
O livro apresenta um belo projeto gráfico de Iago Sartini feito a partir da seleção e do aproveitamento de imagens de dominio público criadas por artistas dos séculos XVI, XVII, XVIII. O novo beija o antigo numa edição primorosa. Literatura de primeira. Ótimas histórias. Um livro para a gente se deliciar com seu conteúdo e perceber como o dedo de um bom editor (no caso, Denyse Cantuária) pode dar mais sabor a uma obra quase centenária. Não vi as horas mas certamente passavam das quatro da manhã quando terminei de ler o livro e lancei meus olhos agora famintos de sono de volta para o quarto. Desliguei a TV, deitei na cama e... tenho certeza de que dormi com um sorriso no rosto. Hatuna Matata.
3 comentários:
Eeeeeeeeeeeeeeeeeebaaaaaaaaaaaaaa!Estamos devidamente apresentados!
;o)
Esta sua maneira de escrever é tão envolvente e encantadora que já me apaixonei pelo livro. Abs
Mesmo não apreciando o gênero, por questões pessoais, deu vontade de ler o livro.Talvez descubra um melhor que Poe.
Abração
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