Meu pai nasceu no interior do Ceará e viveu uma infância árida de sabores literários. Entre a sua casa e a escola havia uma distância razoável que era percorrida diariamente no lobo de um jumento. Tinha sorte. Outros percorriam a pé. Apesar disso, a vida dura do povo do sertão não tornou o menino Francisco um homem rude. Muito pelo contrário. Estudou até onde pôde e seguiu à risca os ensinamentos religiosos. Não sei ao certo, mas a Bíblia deve ter sido seu grande livro onde viajou nas aventuras de Jonas no interior da baleia ou Daniel na cova dos leões. Ainda hoje, gosta de ler biografias de santos e outros assuntos relativos à vida religiosa.
Muito tempo depois, com a chegada dos cabelos brancos, meu velho ganhou o título de “Seu” Freitas. Assim ainda o chamam, muitos. Veio a aposentadoria e, aos poucos, vi que poderia – depois de aprender tanto com ele – dividir com meu pai o gosto por tantos livros que tive a oportunidade de conhecer. Desde então, nos tornamos parceiros de algumas leituras. Houve uma revolução lá em casa e depois dos 60 anos, na melhor idade, o menino do sertão descobriu a internet, voltou a estudar e, depois de tanto trabalho, pôde se entregar aos prazeres de uma juventude tardia, porém, bem vinda. Hoje, distantes a apenas três horas de avião, somos mais amigos que pai e filho.
Demorei a encontrar este livro mas, confesso que fui negligente em minha busca. Dia desses descobri O Almirante Louco (Fernando Pessoa, organização de Carlos Felipe Moisés, ilustrações de Odilon Moraes, SM) e meus olhos se encheram de cores, cheiros, arrepios, saudades e outras sensações. O curioso é que foi em abril, mês em que o “Seu” Freitas faz aniversário. Enfim, encontrei o presente. Tive que encomendar outro para mim, pois só tinha um exemplar na livraria.
São apenas 64 páginas, mas, como disse antes, é um aperitivo. Delicioso. Temperado, com ingredientes selecionados por Carlos Felipe Moisés, que escreve seus comentários com uma linguagem concisa, fácil de entender, sem os arroubos eruditos de algumas edições – que assustam leitores mais simples. Divididos em blocos, Moisés apresenta características de Fernando Pessoa e seus personagens: Alberto Caeiro (poeta da natureza), Álvaro de Campos (o almirante louco) e Ricardo Reis (um poeta calmo e ignorado). Tudo seguido – é claro – de uma Seleção de poemas. Estão lá Quadras ao gosto popular, trechos de O Guardador de Rebanhos, Ah, um soneto entre outros. Por fim, há uma biografia leve, seguida de ótimas indicações de leitura para os que tiverem mais fome de Fernando Pessoa.
O Almirante Louco segue amanhã para os braços de “Seu” Freitas. Mais um pequeno mimo em retribuição a tanto que me deu e ainda me oferece. Fica aqui o desejo íntimo de que Fernando Pessoa e seus outros “eus” encantem desde o menino do sertão até o jovem senhor de cabelos brancos, personagens que habitam em meu pai, um homem que – mesmo sem ter lido o Poeta português – me ensinou:
“Quem tem pouco, tem tudo;
Quem tem nada, é livre;
Quem na tem, e não deseja
Homem, é igual aos deuses.”
P.S. As imagens:
1ª - Capa do Livro; 2ª - Fernando Pessoa por Odilon Moraes; 3ª - Alberto Caeiro por Odilon Moraes; 4ª – Álvaro de Campos por Odilon Moraes e 5ª – Ricardo Reis por Odilon Moraes.