“LER É UMA AVENTURA”
A gaúcha Lígia Cademartori, colaboradora do Correio, radicada em Brasília há mais de 20 anos, é uma das mais importantes pesquisadoras da história da leitura no Brasil. Mas, antes de tudo, é uma leitora apaixonada, uma dependente química dos livros. Ela se revolta com o fato de que os professores quase sempre são colocados na condição de instrumentos dos projetos de leitura e não de sujeitos pensantes. Lígia acaba de publicar O professor e a literatura para pequenos, médios e grandes, em que defende uma visão original e polêmica da leitura em uma era do bombardeio dos meios de comunicação de massa e do império do consumo. Ela sustenta que detestar um livro pode ser algo bem interessante e o importante é ler com paixão.
Você escreve sobre muito sobre os desafios para a formação de leitores. Mas, afinal, como se tornou uma leitora?
Eu não poderia deixar de ser leitora porque nasci em uma casa de leitores. Meu pai era um empresário apaixonado por filosofia e poesia, e a minha mãe devorava romances e gostava de cinema. O meu pai era o que chamo de leitor dependente, ou seja, aquele que não vive sem leitura. Quando estava para morrer, sobrevivendo na base do soro, perguntei se ele não precisava de alguma coisa. Então ele me pediu para abrir um jornal e se aproximar dele para que pudesse ler. Argumentei que ele não podia, pois estava tomando soro e ele respondeu: “Fazer soro sem ler enlouquece”.
Mas viver em uma sociedade de consumo sem ler também não enlouquece?
Olha, estamos vivendo uma situação perturbadora: não somos mais do que consumidores. Você é um consumidor classe A, B ou C. É terrível, mas desde o instante em que chegam à escola, as crianças são avaliadas pela marca do tênis ou da mochila. Todos procuram se adequar aos padrões do consumo para sobreviver. Quem não se enquadra é excluído, pois a sociedade de consumo é bastante totalitária e intransigente.
Qual a responsabilidade da escola nesse processo? Ela não poderia ter uma postura menos passiva em relação ao mundo do consumo?
As crianças já nascem com uma pauta de consumo e a escola é um cenário desse processo. A escola já produziu símbolos, já foi referência, mas, hoje, ela só repercute o que ocorre no mundo da mídia. Mas, para que ela interfira na formação das crianças é preciso que os professores sejam leitores, é preciso que eles não se rendam à pauta do consumo e ao grande jogo de interesses que envolve o mercado editorial. A literatura é uma provocação e um convite para o ser, para a sua singularidade, para ouvir a sua voz.
É possível transmitir a paixão pela leitura sem gostar de ler?
Eu perguntei a um professor que estava indicando alguns livros: “Você gostou?” E ele respondeu: “Ainda não li”. Que critério está comandando essa escolha? Muito possivelmente o da publicidade. É preciso conceder aos alunos a liberdade de se manifestar com franqueza sobre a sua experiência de leitura. Deixa eles dizerem que detestaram, que odiaram, que acharam um saco. Não gostei dá uma discussão fantástica. Não gostar é um efeito tão importante quanto gostar. A função da literatura não é formar consensos, é colocar os sentidos em tensão. Qualquer coisa que não seja a apatia é boa.
Como despertar o interesse pelo livro em uma sociedade da informação, sob um bombardeio vertiginoso de estímulos e seduções?
Hoje, as escolas de primeiro e segundo graus têm muito mais livros do que há 30 ou 40 anos. No entanto, não podem concorrer com a velocidade e o processo avassalador da informação instantânea. O professor tem de saber que não vai entrar pela porta da frente, mas sim pela fresta. Na era da velocidade ele vai propor: pare com tudo, vamos fazer a experiência lenta, mas essencial da leitura. Ela é uma aventura do sentido.
O que Monteiro Lobato poderia fazer se estivesse vivo?
Monteiro Lobato não concorreu com os meios de comunicação. A minha geração sempre teve a literatura por perto. Só existiam o livro, o rádio e a eletrola. O Lobato formou toda uma geração de leitores com novos valores. Ele era um racionalista, formou uma geração de crianças críticas e irreverentes. Lobato insinuou, sem que os pais percebessem, uma moral relativa, que rompia com as ideias prontas e a moral absoluta.
Você acha que é possível estabelecer uma relação espiritual com os autores que a gente lê nos livros?
Certa vez, quando eu trabalhava em uma instituição do governo, relacionada aos livros, recebi um telefonema e a voz do outro lado da linha se identificou: “Eu sou filha do Monteiro Lobato”. Eu disse para ela: “Eu também”. A minha maneira de ver o mundo foi muito influenciada pelo espírito crítico do Lobato.
Tivemos uma produção de literatura infanto juvenil de alta qualidade com a Ruth Rocha e a Ana Maria Machado. Elas não fizeram a cabeça de várias gerações de crianças?
São autoras que tiveram uma função muito importante porque a obra delas questionou muito os valores opressivos de um país que vivia sob uma ditadura militar. Elas fizeram a sátira e a crítica do poder em uma sociedade autoritária. Mas a literatura dirigida às crianças e aos adolescentes não fala mais das relações do poder.
O que mudou e quais são os traços marcantes da nova literatura para crianças e adolescentes?
Eu detecto mudanças em dois aspectos: no plano formal e nos temas. No plano formal, o desenho e os textos passaram a ter a mesma importância. As imagens não se limitam mais a serem ilustrações do texto. É como se as imagens narrassem uma história e o texto outra. Essa tendência é bastante significativa em uma cultura em que a imagem ocupa um espaço avassalador no imaginário das crianças. E, neste sentido, valeria a pena citar dois nomes: Fernando Vilela e o brasiliense Roger Mello. Em nossa sociedade eminentemente visual, em que tudo passa pela tevê, a nova literatura seduz pela imagem. O brasiliense Roger Melo é um dos maiores ilustradores do mundo. É uma grife em qualquer bienal internacional do livro. O outro aspecto interessante na literatura do século 21 é a tendência a ver e respeitar as diferenças. Você não vê o outro como objeto do seu olhar, mas como sujeito. Uma obra como Lampião e Lancelote, de Fernando Vilela, aproxima diferentes culturas diferentes e aparentemente distantes. Aprender a ver o outro é o traço essencial dessa nova literatura.
Por que a sua ênfase nos clássicos?
Questiono o absolutismo do conceito de literatura juvenil. O exemplo do que ocorreu com o escritor Luiz Rufatto me parece muito bom. Ele tinha 12 anos, morava em uma cidadezinha do interior de Minas, passou por uma biblioteca, mas não estava à procura de nenhum livro. Uma bibliotecária lhe indicou um livro russo de leitura adulta que, a princípio, não tinha nada a ver com a realidade imediata dele, em vez de replicar o que se passa na tevê. O livro teve um enorme impacto em sua sensibilidade e despertou sua veia de escritor. Sou capaz de apostar que o livro da Feiurinha, escrito pelo Pedro Bandeira, que serviu de base para o filme da Xuxa, estará na maioria das listas de livros a serem indicados nas escolas. A literatura também virou um item do consumo e do mercado. Por isso, eu tenho reivindicado, quixotescamente, que o professor leia para que ele mesmo seja capaz de fazer a sua lista.
Você escreveu um livro preocupada com a relação didática dos professores com os alunos e, ao mesmo tempo, afirma que nem todos serão leitores. Não é uma contradição?
Sou filha única e todas as minhas notas em matemática eram ruins, ficavam abaixo da média em outras matérias. Os meus pais contrataram os melhores professores de matemática, mas não adiantou, não consegui me apaixonar por aquilo. Tenho uma amiga que fica acordada até de madrugada, no gelo do Rio Grande do Sul, para fazer cálculo. Ela é louca por aquilo. Fui também aluna medíocre de música e abandonei o piano no dia em que a professora disse que, a partir dali, eu teria de me dedicar cinco horas por dia. Eu perguntei: e que tempo terei para ler? Ela disse: você não terá. A escola tem a obrigação de dar competência textual aos alunos, ensinar a ler e a escrever. Mas a paixão pela leitura também é uma vocação.
A que leitor se refere quando afirma que nem todos serão leitores?
Há o sujeito que lê eventualmente, que está de férias e compra um livro para ler na praia. Mas estou falando de gente que não pode viver sem ler.
Ler também cria dependência química?
Sim, tem gente que não consegue viver sem ler, não consegue parar de ler.
O Roland Barthes afirma que da mesma maneira que existe um obscurantismo do saber existe um obscurantismo do prazer. Ou seja: há prazeres que desconhecemos. Você concorda?
Concordo plenamente, é um prazer que exige iniciação, mas acho também que a leitura é uma aventura da subjetividade. A leitura é doação de sentido. Quem dá o sentido é quem se emociona, é o sujeito. Nem sempre essa aventura será do prazer. Ela pode ser dolorosa. E também você precisa admitir que algumas pessoas não têm esse prazer. O nosso magnífico poeta João Cabral de Melo Neto destestava música e teatro. Mas por causa disso, ele criou uma poesia toante, uma antimúsica, uma poesia a palo seco.
Por que abandonar o programa Big Brother Brasil para ler um livro?