Dona Elenita tinha poderes especiais. Como diria Lya Luft, era uma bruxa boa. Todas as manhãs ela empestava a casa com um aroma que saía da cozinha, mais precisamente, da panela (era muita bandeira levar um caldeirão lá pra casa). Durante anos comandou a cozinha e a faxina (sim, ela também tinha uma vassoura) na casa em que o Tino morava em Sobradinho na Bahia. A lembrança maior era que, depois da lição de moral do desenho He-man, vinha um almoço delicioso onde Dona Elenita enfeitiçava toda a família pelo paladar. O Tino vivia de olho na cozinha. Queria arriscar uns quitutes. Foi por volta dos 15 anos que teve a primeira oportunidade, num dia em que todos saíram e ele ficou frente a frente com o fogão, a despensa, a panela e a inexperiência. Era um aprendiz de feiticeiro. Queria transformar alguma coisa em comida. A primeira idéia foi fazer um macarrão. Aquela coisa dura, que vinha ensacado, que apresentava formas variadas, que amolecia, ganhava sabor e cor em contato com a água. Durante muito tempo imaginou como seriam as árvores que davam aqueles frutos tão deliciosos e multiformes. Coisas da imaginação infantil. O fato é que ele adorava o macarrão da Dona Elenita. Sempre al dente, vermelhinho, gostoso. Pareceu fácil. Naquele início dos anos 80 não tinha receitas na internet muito menos o miojo. No interior do interior da Bahia, então, molho de tomate era um luxo. Mas Tino tinha aprendido como fazer. Tinha a certeza. Era fácil. Encheu a panela com água, acendeu o fogo e a fome, despejou o espaguete lá dentro e esperou ele ficar pronto. Para ele, ficar pronto significava um macarrão meio duro, meio mole e vermelho. Mas o tempo passou e nada do macarrão ganhar cor. A água ferveu (pois é, ele colocou a massa na água ainda fria) e o macarrão continuou pálido. O Tino também! Depois de muito tempo ele percebeu que faltou algo naquela poção e que, se era para matar a fome, o jeito era desligar o fogo e comer a gororoba grudenta e insossa que nascera da sua primeira e desastrosa experiência nas artes mágicas da culinária. O feitiço se voltou contra o feiticeiro. O aprendiz esqueceu – entre outroas coisas - o sal, o óleo e o urucum. Hoje ele aprendeu os segredos da boa mesa e, a exemplo da Dona Elenita, é o meu sapo-príncipe-cearense quem comanda nossa cozinha com sua alquimia gostosa repleta de criações e fantasia. Enfeitiça nosso paladar e põe mais sabor na nossa vida. Mas o Tino não foi o primeiro a se dar mal. A exemplo dele, Tonhão, Chancery e o mais antigo deles: o aprendiz do alemão Goethe tiveram seus desastres eternizados na literatura infantil. Vamos falar um pouco destes personagens que – variações sobre o mesmo tema – têm o poder de encantar (desta vez, sem desastre) a fantasia dos leitores.
Talvez o mais antigo deles esteja presente no texto de Goethe, APRENDIZ DE FEITICEIRO que ganhou uma excepcional edição da Cosac Naify em 2006 com tradução de Mônica Rodrigues da Costa e ilustrações do genial Nelson Cruz. Na história o feiticeiro se ausenta e o garoto decide encantar uma vassoura para fazer o serviço doméstico. A história foi popularizada na animação homônima da Disney em que o Mickey faz o papel do aprendiz. Nesta edição, em capa dura e com a inclusão do texto original em alemão arcaico, difícil saber o que mais me encantou: tradução ou ilustração. Na dúvida, fiquei com os dois. Um casamento perfeito. Não entendo nada de alemão. Do arcaico, então... Mas olhando o texto original e a tradução, percebe-se o cuidado em manter a métrica. Com mais cuidado, notamos o trabalho na escolha de palavras quase monossilábicas, no ritmo que elas ganham no corpo do poema (dá para perceber a tensão do aprendiz à medida que as coisas vão dando errado) e o cuidado com as rimas. Já Nelson Cruz, a meu ver, dá um tom de brasilidade à história da tradição oral alemã. Seu aprendiz parece um garoto saído de uma favela brasileira. Casas justapostas com seus telhados multiformes, escadarias e algumas cenas do cotidiano com carrinhos de pipoca e pipas no ar. Brasilidade à flor da pele. Um livro impecável.
No início do ano fui fisgada por um livro com título e projeto gráfico encantadores. O MAGO, O HORRÍVEL E O LIVRO DE FEITIÇARIA (Pablo Bernasconi, Girafinha). Ao chegar em casa, fui contaminada também pelo enredo. Chancery é o triste homem azul e feio a quem os habitantes do vilarejo chamam de Horrível. É também o ajudante do mago Leitmeritz, dono do Livro Vermelho de Feitiçaria, que guardava todos os segredos do mundo, fonte de inspiração para os feitiços do mago. Certo dia, na ausência de seu patrão, o Horrível se apodera do livro e tenta obter sozinho seu desejo mais íntimo: “- Quero ser lindo!!!”. É fácil imaginar: não deu certo. E pra piorar, outras coisas estranhas passaram a acontecer, até que o mago põe tudo em ordem outra vez. O argentino Pablo Bernasconi, autor e ilustrador desta história, tem um traço que lembra os melhores trabalhos de André Neves. Embora André trabalhe muito com tecido, estampas, texturas e papéis (ou seja, ele põe a mão na massa!!!), Pablo nitidamente trabalha centrado na computação gráfica. São técnicas diferentes e resultados igualmente belíssimos. O livro do Horrível é lindo (perdoem o trocadilho... não resisti). Um presente para os olhos e um prato cheio para a imaginação.
Por falar em prato cheio, nosso próximo aprendiz, assim como o Tino, quis fazer um macarrão. STREGA NONA – A AVÓ FEITICEIRA é um conto tradicional. Nesta edição da GLOBAL, pela coleção CRIANÇAS CRIATIVAS, o texto e ilustrações são do espetacular TOMIE DE PAOLA que abusa do traço para contar com poucas palavras a história de Tonhão que cuidava da casa e do jardim da vovó feiticeira. Um dia, espionando as poções mágicas que saíam do caldeirão, descobriu que dele saía também uma macarronada deliciosa. A vovó feiticeira precisou viajar e, faminto, Tonhão arriscou um passe de mágica para transbordar a massa do caldeirão. Matou a sua fome, a dos moradores da vila e... Bem, posso dizer que Tonhão esqueceu algumas palavras mágicas e a confusão só acabou com o retorno da vovó. Tomie de Paola é sinônimo de ótimos livros. Suas ilustrações carregam traços e cores que encantam crianças de todas as idades. Não é diferente nesta versão de Strega Nona. Macarronada, uma vovó simpática e seu ajudante desastrado são ingredientes para uma história divertida, gostosa e inesquecível. Obrigatória para uma estante que preza a fantasia.
Agora, reúna estes três livros, chame a garotada para comer uma boa massa, polvilhe queijo ralado e maravilhas sobre o molho e saboreie as emoções. Certamente, as crianças podem aprender a mágica de encantar com palavras. Só não fique longe de casa por muito tempo. Pode ser que os aprendizes precisem de uma forcinha. Hatuna matata.
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